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Curatela e respeito à vontade presumível: liberalidades de bens do curatelado
Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Advogado, parecerista e árbitro. Pós-Doutorando em Direito Civil (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito (UnB). Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de Ministro do STJ. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Instagram: @profcarloselias. E-mail: carloseliasdeoliveira@yaho.com.br
Brasília, 9 de abril de 2025.
Em continuidade a outras publicações nossas sobre questões importantes sobre a proteção da pessoa sob curatela[1], enfrentaremos, no presente artigo, a seguinte questão: é ou não viável que a pessoa sob curatela faça doações a terceiros mediante autorização judicial?
Em uma interpretação literal do art. 1.749, II, do Código Civil (CC), a resposta é negativa. Veja o referido dispositivo:
Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade:
I - adquirir por si, ou por interposta pessoa, mediante contrato particular, bens móveis ou imóveis pertencentes ao menor;
II - dispor dos bens do menor a título gratuito;
III - constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o menor.
Entendemos, porém, que o referido dispositivo deve ser interpretado em compatibilidade com o princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e com o princípio da vontade presumível[2].
Defendemos que a proibição de liberalidades do art. 1.749, II, do CC pode ser flexibilizada quando, no caso concreto, o juiz verificar compatibilidade com os princípios acima.
Há duas hipóteses principais.
A primeira é o caso de aplicação da regra do respeito à vontade presumível da pessoa vulnerável ao tempo de sua lucidez[3].
Quando a liberalidade condiz com a conduta que a pessoa curatelada adotava antes da interdição, ela deve ser admitida.
É que, com a interdição e a consequentemente nomeação de curador, a diretriz a ser adotada é a, no que for viável, de preservar o estilo de vida da pessoa. Essa é a vontade presumível dela, ou seja, a vontade que ela externaria caso conseguisse exprimir lucidamente sua vontade. Cuida-se de um imperativo para garantir a dignidade da pessoa humana, em atenção ao princípio do melhor interesse da pessoa incapaz.
Pense em uma pessoa que, antes de ser interditada, fazia doações mensais a favor de uma família carente, de uma instituição filantrópica ou de um conhecido. Com sua interdição, seria totalmente agressivo contra a vontade presumível dessa pessoa “fechar a torneira” dessas liberalidades e proibir a continuidade dessas doações periódicas, a pretexto de uma interpretação literal (e indevida) do art. 1.749, II, do CC.
O princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável recomenda uma postura inercial de estilo de vida, com continuidade dessas liberalidades. Afinal de contas, dentro do estilo de vida que a pessoa incapaz levava, era isso que lhe fazia feliz. Não cabe ao Poder Público ingerir no âmbito das preferências individuais para romper o estilo de vida que a pessoa incapaz adotava antes da interdição.
É claro que, se as doações estiverem efetivamente a comprometer a subsistência da pessoa vulnerável por conta de dívidas e de outros problemas financeiros, o caso será de “fechar a torneira” das liberalidades. Afinal, pelo princípio da vontade presumível, um homo medius cessaria liberalidades em casos como esses, de insuficiência financeira de custeio das próprias necessidades.
Mais um exemplo ocorreu com um servidor público de alto escalão que veio a perder a lucidez por conta de problemas neurológicos e que veio a ser submetido a curatela.
Antes da interdição, ele – que já dispunha de imóvel próprio para moradia – utilizava parte de seu considerável salário para fazer “liberalidades” em favor de sua filha adulta (que não tinha profissão regular) e de seus netos.
Pagava despesas pessoais da filha, pagava escola particular a netos, comprava iphone e outros produtos para eles etc. Viajava com sua filha e netos para Paris e para outros países, custeando as despesas de todo mundo.
Na cosmovisão dele, a felicidade estava em utilizar parte de seu dinheiro para ver sua filha adulta e seus netos fruírem de uma qualidade de vida de classe média alta.
Supondo-se que esse alto servidor público não esteja em situação de endividamento e que persista com condição financeira vantajosa (suficiente para custeio das liberalidades sem comprometimento das próprias necessidades), indaga-se: seria compatível com a reta justiça que, no caso de interdição dessa pessoa, o juízo passe a proibir a continuidade dessas liberalidades e desse estilo de vida, expondo a filha adulta e os netos a decaírem no padrão de vida?
Entendemos que não.
Cabe ao juiz autorizar a continuidade desse estilo de vida, com essas liberalidades, pois essa era a cosmovisão que guiava a pessoa curatelada antes da interdição.
A maior felicidade desse indivíduo era propiciar, com as liberalidades, boas condições financeiras à filha adulta e aos netos. E essa perspectiva de vida deve ser protegida após a interdição, em prestígio ao princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável.
Não cabe ao Poder Público questionar o estilo de vida que era adotado pela pessoa antes da interdição nem adentrar na sua cosmovisão.
Em palavras populares, se a pessoa “sustentava filhos folgados”, isso é irrelevante: a interdição deve seguir a diretriz de manter, no que for viável, o estilo de vida da pessoa.
Seria, inclusive, inconstitucional que o Poder Público, com o processo de interdição, passasse a impor à pessoa vulnerável um estilo de vida sombrio, apático, voltado apenas a assegurar friamente casa, comida e remédios e a acumular dinheiro em aplicações financeiras.
A verdade é que, na prática forense, não é incomum essas agressões à dignidade da pessoa humana. Há diversos casos de pessoas sob curatela cujos altos salários são retidos em parcela considerável para engordar aplicações financeiras por força de decisão judicial, de modo que o dinheiro liberado serve apenas para assegurar o custeio de despesas básicas de sobrevivência.
Esse tipo de tratamento coisifica o ser humano, transformando a pessoa curatelada em uma espécie de objeto que precisa ser preservado apenas no seu mínimo existencial. Despreza-se que, mesmo após perda da lucidez, estamos diante de um ser humano, que merece ter uma vida digna, à luz daquilo que lhe preenche a alma e o espírito.
A segunda hipótese em que se deve flexibilizar a proibição de liberalidade do art. 1.749, II, do CC é quando a vontade presumível no caso concreto o recomendar, à vista das particularidades do caso concreto.
Pense, por exemplo, em uma pessoa que, desde o nascimento, esteve sob curatela por falta de lucidez. Seu curador é um amigo da família, que, sempre, com todo amor, dedicou-se ao mister.
Imagine que esse curador venha a ficar doente e que, para cura, precise de uma cirurgia. Suponha-se que essa cirurgia venha a custar cem mil reais e que o curador não disponha de recursos.
Se a pessoa curatelada dispuser de farto patrimônio (ex.: tenha dois milhões de reais em aplicações financeiras, além de uma pensão mensal elevada), parece-nos totalmente compatível com a vontade presumível autorizar a doação do dinheiro para a cirurgia.
Um homo medius, com lucidez, certamente doaria um dinheiro desse para salvar uma pessoa tão próxima a si, que se sacrificou para exercer o tão laborioso e exigente mister de curatela. É consabido que a tarefa de ser curador não é singela e exige elevadíssimos sacrifícios pessoais, sacrifícios esses que são geralmente compensados pelo amor nutrido pela pessoa vulnerável.
Enfim, entendemos que a vedação a liberalidades pelo curatelado (art. 1.749, II, do CC) não se aplica quando, no caso concreto, houver incompatibilidade com os princípios da vontade presumível e do melhor interesse da pessoa vulnerável. A diretriz da curatela não é a acumulação de riquezas! É a garantia de uma vida digna à pessoa vulnerável, em uma perspectiva despatrimonializada do Direito Civil.
Nossa recomendação aos leitores é que elaborem Diretivas Antecipadas de Curatelada por escritura pública para se protegerem. Isso, porque, infelizmente, a tendência forense atual ainda é um tratamento patrimonializado, frio e coisificado da pessoa sob curatelada.
[1] (1) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Curatela de pessoas vulneráveis e as diretivas de curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023, Disponível em www.senado.leg.br/estudos.. Acesso em 18 de abril de 2023; (2) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024, Disponível em www.senado.leg.br/estudos.. Acesso em 7 de maio de 2024; (3) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu: o que deve acontecer com a vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/Senado, agosto 2023 (Texto para Discussão nº 320). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em: 11 ago. 2023; (4) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela: prestação de contas por resultado e os limites do controle jurisdicional a posteriori. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/428018/curatela-prestacao-de-contas-por-resultado. Publicado em 9 de abril de 2024.
[2] Sobre este último, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da vontade presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Publicado em 18 de janeiro de 2023.
[3] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Curatela de pessoas vulneráveis e as diretivas de curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023, Disponível em www.senado.leg.br/estudos.. Acesso em 18 de abril de 2023.
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